sábado, novembro 18, 2006

Estou desarmada...


Ele continua sentado no sofá. Gostava de dizer-lhe muitas coisas mas não sei quais. Tenho nos meus gestos possíveis o impulso para falar-lhe, mas, ao preparar aquilo que quero dizer, interrompo-me a meio.


E permanece o silêncio. Gostava que agora em paz, existíssemos apenas um diante do outro, os olhos a serem a única garantia necessária de sinceridade. Talvez conseguíssemos até entender tudo o que já não somos capazes de dizer, mas que sobrevive dentro de nós, ou a nossa volta, como brisas de sentido, brisas invisíveis, claro, mas que tocam a pele, a desarranjam e que, em certos momentos, diante de um espelho, nos dão a sensação real e absoluta que a nossa própria pele, não nos pertence. Sentimos que nos afastamos de um caminho qualquer, mas, quando pensamos, percebemos que não tínhamos traçado nenhum caminho. Avançamos a deriva e chegamos aqui.
A nossa casa. Enchemos todas as divisões com as nossas vozes. Convencemo-nos de que conhecíamos as últimas fronteiras um do outro e habituámo-nos a essa mentira. Nasceram e cresceram os segredos, como papeis escondidos dentro dos livros das estantes, como pormenores dentro de caixas de loiça pousadas nas prateleiras, como corações pequenos e brilhantes. À tarde, vejo-te passar pelo corredor, o teu vulto repleto de pensamentos. Sem querer, convenço-me que conheço todos os pensamentos que levas contigo. Da mesma maneira, sem palavras, acredito que acreditas conhecer todos os pensamentos de que sou capaz quando te vejo e fico em silêncio. Reduzimo-nos a nós próprios. Transformamo-nos em imagens simples que nos continuam a moldar mesmo quando fazemos por nos afastar delas. Se tento ser aquilo que pensas que sou, existo algemado a essa ideia que criaste de mim. Se tento afastar-me daquilo que pensas que sou, também. Contigo acontece a mesma coisa.
Agora desejo a tranquilidade com que sonhámos, as tardes de Novembro, a chuva lá fora, e tu estás sentado no sofá. Noutras ocasiões, era eu que estava sentada no sofá e eras tu que estavas aqui onde eu estou, desarmado, a dizer estas mesmas palavras para o teu interior. Essa é a verdade, apesar de, nessa hora, se me tivesses perguntado, ser quase certo que teria negado estas palavras. Da mesma maneira, se agora te perguntasse, talvez não dissesses que pensas o mesmo que eu. Da mesma maneira, se agora me perguntasses, talvez não dissesse que penso o mesmo que tu. Esta é a contradição que somos. Esta é a nossa tragédia banal. Esta é a nossa corda marcada por nós que, quando começamos a desatar, se embaraçam noutros nós.
No entanto, agora, estou desarmado e sinto que parei de envelhecer. Posei sobre a mesa da cozinha todas as certezas acerca do futuro. Deixei uma parte grande do passado no parapeito da janela aberta. Tu estás sentado no sofá da sala. Olho-te sem que percebas a minha presença, apenas com o prazer antigo recuperado, de olhar-te e tentar desvendar os teus mistérios. Antes, acreditar era uma forma de não acreditar. Agora acreditar é acreditar mesmo. Peço confiança a mim próprio, peço todos os sinónimos e entrego-me a este momento único em que percebo lentamente que estamos no mesmo lugar. Viemos de muito longe para chegarmos aqui. Tu foste um menino a nascer. Eu fui menina a nascer. Esses instantes foram tão grandes como este em que apenas estamos aqui. Apenas juntos.
A nossa casa. Seremos capazes de criar horizontes na superfície das paredes. Chegarão décadas para nos saudar. Transformar-nos-emos em muitas pessoas. A nossa pele. Acontecerá aquilo que nunca imaginámos ou talvez aconteça aquilo que imaginámos. Deixaremos de preocupar-nos com o que sobrevive dentro de nós, ou à nossa volta, mas que não nos pertence. E, finalmente, mergulharemos neste momento único, agora. Para sempre, seremos eu, desarmado, a olhar-te, a querer-te, e tu, sentado no sofá, desarmado, envolta em mistérios que tentarei desvendar, certo de nunca poder conhecê-los. Juntos, pararemos de envelhecer, escondidos no interior do tempo. Juntos encontraremos s soluções que já soubemos e quisemos esquecer. Juntos, eu, tu, apenas juntos…


Este texto foi ligeiramente alterado. O original é da autoria do escritor José Luís Peixoto.
Decidi colocar este texto aqui para que alguém seja capaz de entender o que sinto...

Serenamente